A LITERATURA POR TRÁS DOS OLHOS DE UM LEITOR
“Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.” -
Antonio Candido
Por Rafaela Coneglian Damasceno
Há quem diga que a literatura não importa para a sociedade - embora a realidade seja o exato oposto: a literatura é a sociedade. Em seu livro “O direito à literatura e outros ensaios”, Antonio Candido discorre sobre a importância da literatura e como ela reflete a realidade da época em que foi escrita.
O professor e sociólogo brasileiro, que veio a falecer em 2017, acreditava que a literatura é um registro cultural - o folclore, as lendas, as formas mais complexas de produção escrita das grandes civilizações; tudo constitui a literatura. Cada sociedade molda suas manifestações culturais, poéticas e ficcionais conforme suas crenças, suas realidades e sentimentos.
“Não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação”, afirma ele. A literatura se manifesta nos sonhos, onde a mente dá voz à criações ficcionais e fantásticas; nos devaneios amorosos do dia a dia; nas novelas; nas leituras de romances e nas mais variadas atividades cotidianas.
“Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito”, diz Candido.
A literatura está presente, de certa forma, na vida de todas as pessoas. Consequentemente, todos os indivíduos deveriam ter o direito de acesso a todas as formas literárias. Esse direito, segundo Candido, é inalienável - ou seja, não pode ser restringido ou revogado.
“Podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura”.
Cristhiano Aguiar era ainda uma criança quando entendeu o que era um livro. Seus pais, professores, estavam sempre com um nas mãos, e ele cresceu rodeado pela literatura. Quando pensa em sua casa em Campina Grande, na Paraíba, onde nasceu e morou até se mudar para São Paulo, ele se lembra da biblioteca que seus pais sempre tiveram. Os livros, para ele, não eram algo estranho, alienígena - faziam parte do seu cotidiano.
Hoje, aos 39 anos, o que lhe vem à cabeça quando pensa na leitura não é um livro ou um momento - e sim um lugar. A Biblioteca Cantinho da Gente Miúda, a qual se associou quando era pequeno, foi fundamental para que se tornasse o que é hoje: um leitor.
“É um lugar muito marcante para mim”, recorda ele. Cristhiano se lembra de ir constantemente ao Cantinho da Gente Miúda, passar um tempo observando os livros, escolher cinco ou seis deles e colocar na sacola de papelão personalizada que o local oferecia. Depois de chegar em casa, cuidadosamente acomodava os livros em seu quarto e escolhia um deles para ler deitado na cama. “Eu tinha muito prazer em ir para lá. Frequentei até a adolescência”, conta.
Cristhiano acha que, sem a presença dessa biblioteca em sua vida, provavelmente não teria se formado em letras e se tornado professor das graduações de letras e jornalismo, mas reconhece que o local não foi a única influência que teve na construção do amor pela leitura. “Meus pais me estimularam muito a ler. Nessa questão de formação de leitores é muito importante que a família seja parceira. Se a família é leitora, ajuda muito. No meu caso, essa biblioteca e a minha família me ajudaram muito mais do que as escolas em que estudei”, afirma.
Esse também é o caso de Mariana Zillo, de 23 anos, que foi estimulada desde cedo pelos seus pais a desenvolver o amor pelos livros. “Quando eu era muito nova a minha mãe já lia para mim. Depois que comecei a alfabetização, passei a ler gibis - lia pelo menos quatro ou cinco antes de dormir. A partir daí meus pais começaram a me incentivar a ler livros sempre maiores, a pegar obras mais complexas, a me desafiar. E eu gostava desse desafio de ler alguma coisa cada vez maior e mais difícil”, explica.
Até mesmo antes de ser inserida no mundo dos livros a literatura já estava presente em Mariana, através dos contos que seus pais inventavam ou liam para ela antes de dormir. E ai deles se tentassem inventar um final que não lhe agradasse! A pequena Mariana se intrometia na hora, moldando as histórias da maneira que lhe convinha.
- Eu não quero que aconteça isso! Quero que aconteça isso - e contava, para os pais, sua própria versão.
Não é à toa que cresceu e se tornou escritora. Mariana publicou, em maio, seu primeiro conto pela Amazon: Verdade, desafio e uma pergunta. O processo foi natural para a produtora editorial, que sempre teve contato com livros e, ao se ver com tempo livre no começo da quarentena causada pela Covid-19, resolveu colocar em dia a leitura e a escrita.
“No início, quando eu achava que a pandemia ia durar só um mês, eu arrasei de ler: lia um livro atrás do outro, era uma vontade de ler que não parava. Depois que eu vi que a pandemia ia demorar um pouco mais pra acabar, percebi que eu tinha que voltar a trabalhar e tinha que continuar a vida normalmente - só que em casa. Então diminui a leitura um pouquinho”, conta.
Agora, Mariana costuma ler um pouco antes do almoço, no tempo livre que possui durante a pausa da vida corrida de professora de inglês. Os livros, para ela, sempre foram um lazer - e seu horário de descanso é utilizado da melhor forma: lendo.
Cristhiano também não se contentou em permanecer apenas atrás das páginas dos livros e se aventurou no mundo da escrita, resolvendo fazer parte do universo que tanto ama. Sua primeira obra foi publicada por volta de 2004, e desde então não parou mais: seu último livro foi um ebook lançado pela Amazon, em 2020, e se chama Trilogia da febre. Ele está trabalhando, atualmente, em uma obra de ficção que pretende publicar neste ano, e espera lançar um livro acadêmico em 2022.
Infelizmente não existe uma fórmula concreta para transformar pessoas em leitores, e disso Edna Silva Feliciano, de 49 anos, sabe muito bem. Sócio proprietária e professora da escola Pinguinho de Gente, que cuida de crianças dos seis meses aos seis anos, Edna tem a árdua missão de alfabetizar os pequenos.
“A alfabetização não tem uma regra clara como a matemática; você tem que ir experimentando, porque o que resolve para uma criança, não resolve para outra”, afirma.
O dia a dia no Pinguinho é caótico, para dizer o mínimo. Enquanto Edna ajuda um dos alunos com mais dificuldade na leitura, outro se aproxima e quer tomar a atenção para si.
- Tia, eu consegui ler isso aqui! P-e-n-s-a-m-e-n-t-o. Pensamento!
- Nossa, parabéns! Você conseguiu ler o “N” sozinho! - festeja a professora, sabendo que as crianças funcionam à base de elogios e, se não forem estimuladas, essa vontade de aprender irá se apagar dentro delas. - Agora você pode continuar lendo ali, porque seu coleguinha precisa mais de mim, tudo bem?
- Ih, ele não sabe! - rebate outra criança.
- Ainda não, mas ele vai aprender. Porque ele está querendo, está com vontade. Igual você - conclui Edna.
“Nossa, se eu não gostasse tanto do que eu faço, ficaria louca!”, ri, lembrando-se de vários momentos em que teve que lidar com todos os pequenos de uma vez só. “Eu não posso ficar brava com aquele que aprendeu mais rápido, ou dizer que ele já sabe, ou não dar atenção. As crianças passam por fases e, se você incentivar, elas vão querer procurar as mais difíceis. E até mesmo aqueles que aprendem mais rápido têm dificuldades. São muitas letrinhas de uma vez só”, complementa.
Marina Ronque, de 50 anos, também sabe das dificuldades de trabalhar com crianças. Formada em história, pedagogia e teatro, a atriz trabalha como professora de teatro há mais de dez anos, e é completamente apaixonada pelo que faz. “É uma loucura essa coisa da criação. E o teatro é gostoso por conta disso, porque a criança cria. Uma vez me perguntaram ‘por que você gosta tanto?’, e eu respondi ‘porque não tem tédio’. Nenhum dia é igual ao outro, sempre tem alguma coisa diferente acontecendo. Nunca é um trabalho repetitivo. E como você mexe muito com as emoções, porque o teatro mexe muito com as emoções, então as respostas nunca vão ser iguais, porque cada pessoa é única”, comenta.
Marina acredita que as crianças pequenas são mais visuais, e é importante que elas tenham contato com os livros para se familiarizarem com esse universo. “Quando eu trabalho com os alunos menores, quando eu vou fazer uma contação de história, raramente eu faço sem estar com o livro na mão. Eu acho que, se eu conto essa história e a criança vê o livro, ela vai despertar o interesse por aquela leitura”, afirma. “E sempre, quando eu falo de um livro, eu falo do autor. Eu falo do ilustrador. Eu acho importante mostrar - ó, esse livro é de tal autor, a ilustração é desse outro. Eu acho muito importante que eles tenham esse conhecimento, que não fique só na história”, completa.
No começo de 2020, as contações tiveram que ser feitas através de vídeos, e não presencialmente. Marina chegou a postar algumas em seu canal no YouTube: sempre sorrindo, a atriz não apenas conta uma história, mas vive os personagens. Interpreta, mostra as imagens, se emociona com a leitura e passa, para aqueles que a assistem, a mensagem que os livros contêm.
Ela acredita que as crianças se distraem muito rápido, portanto, deve ser feito o possível para que a atenção delas permaneça nas histórias. A contação é importante, nesse sentido, porque é interativa e desperta a curiosidade dos pequenos. Já os jovens são capazes de prender a atenção em algo por mais tempo; dessa forma, Marina usa uma abordagem diferente para incentivar a leitura. “Do quarto ano para frente eu não faço mais contação de história, eu peço para eles fazerem uma leitura mesmo. Como eles já conseguem ler então eu prefiro, e eles leem uma peça de teatro ou um livro”, diz.
Assim como Mariana, Marina sempre foi apaixonada por histórias em quadrinhos. “Nenhuma leitura pode ser descartada, porque daquela leitura pode surgir o interesse para ler outras coisas. Eu mesma sou uma leitora que comecei lendo histórias em quadrinhos, e eu lia muito, tudo quanto é tipo de gibis: Tio Patinhas, Turma da Mônica, todos os heróis... Depois disso eu evoluí para outras coisas, mesmo gostando de gibi até hoje”, comenta.
A professora defende veemente que todas as leituras são válidas, porque sabe muito bem o quanto é difícil ser desencorajada. “Quando pequena eu tive uma professora que falava que aqueles que liam gibi iam virar pessoas quadradas, limitadas. E eu ficava com aquilo na cabeça. Eu gostava tanto de ler gibi, isso me fazia uma pessoa limitada?”, reflete.
“Muito tempo depois eu fiz um curso, e a pessoa que falou da literatura de quadrinhos explicou que você exercita várias áreas do cérebro quando lê uma HQ, porque é uma história que está resumida de um quadrinho pro outro, e a ligação entre eles é você quem faz. Além disso, você faz a leitura de imagem também, entre outras coisas. E, no fim, quem era a limitada era a professora que falava que nós íamos ficar limitados. E ela fez eu me sentir mal por muito tempo porque eu lia HQ”, ri.
Hoje em dia, Marina fala para todos os professores que conhece que trabalham com a alfabetização: “É um excelente recurso, e todas as leituras são válidas. O importante é que o aluno se interesse”.
E interesse é algo que Nilceu Bernardo tem de sobra. Morador de Lençóis Paulista, cidade do interior de São Paulo, ele viveu até os 12 anos na zona rural da cidade e estudou, quando pequeno, na Escola Isolada - que recebeu esse nome por ficar próxima às fazendas, longe da área urbana. “Até a década de 70 a maior população da cidade de Lençóis era rural”, explica ele. “Então as fazendas tinham uma estrutura muito grande, com igreja, campo de futebol, mercearia, escola... E eu estudava em uma escola que não tinha livros. Então eu tenho pouquíssimas experiências com livros, as professoras eram mais pra alfabetizar no método da cartilha e acabou”, lamenta.
Nilceu só foi conhecer realmente os livros aos 8 anos de idade, quando se deparou com a Biblioteca Municipal Orígenes Lessa. A cada quinze dias, ele e sua mãe iam até a cidade para comprar os produtos que não tinham acesso na área rural, além de ir ao banco.
- Que lugar é esse? - perguntou o pequeno, curioso, ao ver o grande prédio repleto de estantes altas e abarrotadas de livros vermelhos.
- Essa é a biblioteca, meu filho. É um lugar muito importante, onde ficam os livros.
O menino, encantado, não tirou a imagem da biblioteca da cabeça. Como não tinha acesso aos livros, decidiu montar uma “cardenoteca”: “Eu pegava os cadernos usados e acabados de todos os meus amigos de classe e levava pra minha casa”, recorda.
Sua mãe separou, na despensa da casa, um espaço especial para eles. Em meio aos sacos de arroz e feijão, café, carne seca e outros mantimentos, começaram a ficar os cadernos que agora eram posse de Nilceu. “Eu lia as composições das outras pessoas, os textos, as cópias… era a minha forma de ter livros”, conta.
Ele vê a leitura como uma necessidade. Quando se associou, finalmente, à biblioteca, Nilceu leu todos os livros da sessão infantil e teve que aguardar ansiosamente a época em que poderia alugar os livros próprios para as crianças mais velhas.
“Esse hábito de ler foi uma necessidade de querer conhecer, querer me divertir… ajudou muito a aguçar minha imaginação. Como eu morava no sítio eu era bastante solitário”, lembra ele. Os livros foram, então, seus amigos e suas aventuras, e mudaram sua vida para sempre.
Em 2020, aos 48 anos, Nilceu publicou seu primeiro livro infantil: As Aventuras de Platenildo. O livro conta a história de um menino descobrindo - e se apaixonando! -, pela primeira vez, as maravilhas do teatro.
A ideia inicial de Nilceu era escrever um cartão, um folheto, uma orientação voltada para os adultos, para ensinar as pessoas a se comportarem quando vão assistir a uma peça de teatro. “Mas quando eu fui escrever isso eu pensei: a arte não é assim, cheia de regras, essa chatice... não pode isso, nem isso, nem aquilo!”, brincou. “Então eu percebi que você aprende as coisas, e descobre, fazendo. Lendo, participando. Então quando eu tive a necessidade de escrever - porque a escrita é uma necessidade -, eu resolvi escrever um livro infantil”.
Apesar de As Aventuras de Platenildo ser um livro infantil, ele não é um livro para crianças; é um livro para todas as idades. De forma leve e descontraída, a história narra o que não se deve fazer no teatro. E o que se deve fazer: se divertir!
Nilceu acredita que a escrita vicia. Mal lançou o primeiro livro e já tem planos para transformá-lo em uma trilogia! “Eu sempre tenho um exemplo de determinado assunto que já aconteceu comigo ou com alguém conhecido. Acho que é questão de repertório mesmo, quando você cria um repertório - tanto de imaginação quanto de coisas que aconteceram - e quando é provocado por uma necessidade, você acaba escrevendo”, reflete.
Atualmente, Nilceu ocupa o cargo de agente cultural na cidade de Lençóis Paulista e é extremamente grato à Biblioteca Municipal por ter lhe proporcionado suas primeiras experiências com os livros. “Estimulando a leitura você estimula a imaginação, a criatividade, o cognitivo, e eu acredito que a leitura não é só o conhecimento, mas é uma possibilidade a mais de diversão, de treino da memória, da imaginação, da atenção, então eu acho que é fundamental”, diz.
A biblioteca de Lençóis também foi - e ainda é - muito importante para Leda Fernandes. “Quando eu era pequena, minha mãe não lia para mim. Ela trabalhava muito. Mas eu tinha esse estímulo na escola, com a minha professora de educação infantil. Ela era encantada pela leitura, pela literatura, e ela estimulava os alunos de uma forma muito bacana. Eu participava de tudo o que ela fazia; das leituras, dos jograis, e eu me imaginava lendo. Olha que gostoso!”, recorda.
Quando finalmente aprendeu a ler, Leda fez um combinado com sua mãe: quando terminasse todas as suas obrigações referentes à casa, poderia ir à biblioteca. “Então eu descia e passava a tarde toda lá”, conta.
O amor pelos livros foi tão grande que Leda resolveu fazer dessa paixão a sua formação. Sua primeira graduação foi letras. Depois, cursou pedagogia, e fez pós graduação em metodologia do ensino das artes. Também cursou artes cênicas e concluiu diversos outros cursos ao longo de seus 43 anos.
“Quando eu fiz letras foi aquele encontro de tudo o que eu queria aprender. A gramática, entender a formação das palavras, estudar latim, a literatura brasileira, os poemas, nossa... que curso maravilhoso!”, alegra-se.
Em 2000, logo após se formar em artes cênicas, Leda passou a sentir uma inquietação que não ia embora, um anseio de juntar as duas coisas que mais amava: o teatro e a literatura. “Eu queria entender aquilo na prática, unir a literatura e a prática teatral. E fiquei pensando: como eu vou fazer?”, conta.
Lençóis Paulista é conhecida como a cidade do livro, por ter mais livros do que habitantes. A Biblioteca Municipal Orígenes Lessa é a maior de todo o interior de São Paulo e possui, aproximadamente, 120 mil livros - enquanto a cidade possui cerca de 70 mil habitantes. Leda passou a se questionar: “É a cidade do livro, mas será que é a cidade dos leitores?”. A resposta para essa pergunta, na época, foi não. Então de que adiantava o título da cidade, se os moradores não faziam jus a ele?
“Eu comecei a pensar: nós temos um acervo maravilhoso aqui em Lençóis, eu tenho a teoria da faculdade de letras, existe toda essa potência de literatura... e ainda a escola de São Paulo, onde eu cursei teatro. Então eu tinha que fazer alguma coisa”, afirma. “Foi aí que eu pensei em ir para os lugares só para contar histórias. Busquei a diretoria de cultura da cidade no ano de 2002, e falei que queria fazer um projeto de forma voluntária, que queria contar histórias. Foi assim que nasceu A Hora do Conto”.
Neste ano, o projeto A Hora do Conto completa 18 anos e conta, atualmente, com o patrocínio de uma empresa local, a LWART Soluções Ambientais, e o incentivo da Lei Rouanet (Lei de Incentivo à Cultura).
A Hora do Conto, que começou despretensiosamente, como um sonho simples, já viajou o Brasil. Leda já foi contar histórias em São Paulo e até mesmo em Paraty, na FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), um dos principais festivais literários da América do Sul.
Devido ao novo coronavírus, o projeto teve que se reinventar, e em 2020 está exibindo sua primeira versão online.
Hoje, a Hora do Conto não é um sonho apenas de Leda. Apesar de ser a idealizadora do projeto e continuar sendo a voz - e o rosto! - por trás das histórias, e estar sempre à frente de todas as decisões, ela conta com uma equipe para ajudá-la. Neste ano, a produção começou a ser feita em fevereiro - confecção do figurino, compra de acessórios, montagem de cenários, ensaios etc. -, e as apresentações deveriam ter sido iniciadas em março ou abril. Infelizmente, devido à pandemia, tiveram que ser adiadas, e só começaram a acontecer de fato em setembro. E com uma novidade: pela primeira vez, Leda conta as histórias por trás das câmeras.
A Hora do Conto não é pública; ela é feita através de um link restrito enviado para os professores, para que os alunos daquela sala vejam. Mas Leda engatou, o início do ano, em outro projeto: as lives.
“As lives no Instagram e no Facebook começaram em março com essa pandemia, porque nossos contratos, os trabalhos com as aulas, todos os nossos projetos tinham sido engavetados temporariamente, e eu me vi desocupada. E pensei: gente, não posso ficar desocupada... tenho que ser útil!”, ri.
Esse desejo de ocupar a cabeça de maneira produtiva a fez começar a se aventurar em áreas até então desconhecidas. “Foi aí que eu comecei a investir nessa coisa online. Eu nunca, nunca tinha feito nada na internet. Nunca tinha contado uma história assim. Mas comecei. E foi muito bacana porque todo mundo começou a acompanhar! Algumas lives chegaram a ter 300 pessoas online. Foi uma loucura, porque a internet também tem essa questão positiva de aproximar quem está distante, e teve até pessoas de Portugal acompanhando!”, surpreende-se.
Nos meses de março e abril, Leda fazia lives todos os dias, contando histórias de forma gratuita. “Eu tenho prazer mesmo em falar da literatura infantil, de apontar autores interessantes. Eu acho isso super positivo”, explica.
Assim como A Hora do Conto, aquilo que começou de maneira simples e despretensiosa tomou outro rumo, crescendo a proporções maiores do que ela esperava.
“A criança fica em casa o dia todo, não está saindo mais pra ir até a escola, então as lives começaram dessa forma, para ocupá-las. Eu comecei pegando os livros, meus livros, e comecei a contar. E todo dia eu fazia uma live. Depois disso chegou um momento que eu fui contratada pela cidade de Pardinho para fazer uma série de lives, depois a cidade de Macatuba também queria proporcionar as lives através do Facebook e Instagram da prefeitura. E, de novo, uma coisa que começou sem pensar muito teve toda essa repercussão legal”, festeja ela.
Apesar de parecerem simples, as lives demandam muito tempo e dedicação. “Às vezes, quando a gente só assiste, achamos que a pessoa está ali sem fazer nada, liga a câmera e “Oi gente!”, e não é assim. Tem muita coisa pra fazer. Você tem que preparar a história, tem que se preparar, tem que passar todo o mapeamento de cabo de rede - imagina você fazendo a live cai a conexão! -, você tem um grande trabalho”, admite.
Leda, em suas lives, não conta apenas histórias, mas busca outros meios saudáveis de entreter os pequenos - e a família toda! “Eu comecei a fazer desafios, charadinhas, para movimentar a família. Então eu pesquiso muito sobre esses adicionais. Em algumas lives eu ensinei a fazer fantoches, e agora estou pensando em lives com dicas de exercícios de teatro pras crianças fazerem em casa”, conta.
Agora, com o retorno do projeto A Hora do Conto, Leda teve que diminuir a quantidade de lives. Agora elas acontecem apenas uma vez por semana, na segunda-feira. “Depois que a pandemia passar eu acho que vou diminuir o fluxo das lives, mas elas não vão desaparecer. Elas vieram com tudo e vão permanecer dessa forma. As lives foram um presente pra mim”, diz.
Assim como Leda, Marina também se propôs a fazer algo diferente recentemente, aventurando-se no YouTube. Pelo canal da companhia de teatro Atos & Cenas, da qual faz parte, ela participa do projeto Porquê ler escritos e escritores lençoenses.
“Cada um de nós da companhia escolheu o seu livro. Eu queria falar das biografias porque gosto muito delas, então eu peguei algumas que eu já tinha e comecei a reler. E foi emocionante, porque eu fui descobrindo coisas que não tinha percebido da primeira vez que li”, conta.
Para fazer os vídeos, Marina teve que ter muita dedicação. “Não é só escolher o autor que você quer, tem um processo. Não dá pra falar sobre um livro sem lê-lo”, explica. “Então a gente teve que reler, fazer um resumo daquilo que ia falar, montar um roteiro, escolher as músicas que iam tocar nos vídeos. Nós pensamos em tudo, e olha como isso é rico! Acho que isso é o teatro que traz, você pensar como um todo”, reflete.
Marina acredita que esse projeto pode ser a chave para outros projetos futuros. “Acho que isso vai se desenrolar para outras coisas, porque a gente já teve outras ideias”, diz.
Porquê ler escritos e escritores lençoenses foi uma idealização de Nilceu. “Nesse momento de pandemia, em que a biblioteca estava fechada e as pessoas estavam dentro de casa, ele deu a ideia de falarmos sobre os livros que existem em Lençóis”, conta Marina. “E tem bastante. Nem a gente se dava conta que tinha tanto assim”.
Nilceu se sentiu no dever de seguir com esse projeto, na esperança de incentivar as pessoas a lerem. “Eu sabia que tinham muitas coisas publicadas, muita gente escrevendo, e essas obras acabam ficando na gaveta das pessoas ou só compartilhadas no núcleo familiar e de amigos, por falta de uma política pública de estímulo aos leitores. E eu sabia que tinham coisas importantes que as pessoas precisavam conhecer”, explica ele.
O agente cultural acredita que as redes sociais podem contribuir, e muito, no aumento do número de leitores no Brasil. “Acredito que temos que recorrer urgentemente a isso. Tem muita gente ligada à internet que se interessa por literatura”, admite.
Marina conta que a repercussão do projeto surpreendeu os envolvidos. “Tivemos muitas visualizações e eu recebi até uma flor de presente de um dos autores de quem eu falei. Ele me mandou uma carta bem delicada, porque acredito que se sentiu valorizado. E as pessoas que assistem estão gostando muito, compartilhando os vídeos. O último que eu fiz me mandaram o link antes mesmo de eu saber que tinha sido publicado!”, ri.
“Teve um autor que fez um agradecimento emocionado, porque ele achava que ninguém se interessava pelo que ele escrevia. E além do escritor se sentir homenageado, as pessoas se interessam em ler aquele livro. Eu levei a minha mãe em uma consulta e a médica me disse essa semana: eu fiquei com vontade de ler as biografias. Então é legal isso, a pessoa falar que ficou com vontade de ler porque viu um vídeo divulgando a obra. Quem assiste começou a perguntar onde encontra os livros para comprar”, aponta.
Mariana também acredita que as redes sociais podem ser uma ótima plataforma para o incentivo à leitura. Booktuber - o nome dado àqueles que possuem um canal no YouTube voltado à literatura -, ela criou seu canal (Mari Zillo) porque sentiu necessidade de compartilhar suas leituras com alguém, e encontrou na internet alguns bons ouvintes.
“Eu sentia quase uma necessidade de ter alguém pra conversar sobre os livros que eu lia na época em que criei o canal, em 2013. Eu já acompanhava vídeos no YouTube, e comecei a ver que tinha pessoas que falavam sobre livros nos vídeos. E eu comecei a achar aquilo muito legal, e pensei que talvez fosse uma oportunidade legal de entrar nesse universo, nesse mercado editorial”, explica.
No início, Mariana começou a fazer vídeos sem grandes expectativas, mas isso mudou ao perceber que suas palavras fizeram a diferença para algumas pessoas. “Eu não pensava que poderia influenciar alguém a ler alguma coisa, não achava que isso fosse acontecer. Mas então algumas pessoas realmente começaram a vir até mim para falar ‘você fala muito bem dos livros, me deu vontade de ler’ e eu pensei ‘nossa, está dando certo?’. Foi então que eu comecei a querer realmente incentivar, um pouquinho que fosse - se eu conseguisse fazer pelo menos uma pessoa ter vontade de ler já estava bom”, conta.
“Então no início eu queria só compartilhar as minhas leituras, não esperava incentivar ninguém. Acabou que, por tabela, eu incentivei outras pessoas”, reflete.
Ela acredita que os booktubers podem ser uma boa iniciativa para incentivar as pessoas a se interessarem pela leitura. “Eu vejo os youtubers como uma forma de entretenimento também. Boa parte dos influenciadores digitais hoje em dia são fonte de entretenimento. Por ser uma forma de lazer, é algo divertido de assistir porque às vezes os booktubers fazem um desafio, às vezes eles estão conversando com alguma outra pessoa ou até mesmo com um autor. É uma coisa que prende a atenção e, por consequência, você acaba conhecendo livros, autores, editoras, gêneros de leitura. É uma coisa que acontece naturalmente, não é forçado”, indica.
Amante dos livros digitais, Mariana também defende a leitura dos ebooks, que são práticos. “Eu quase não tenho mais espaço pra guardar livros físicos, então o ebook traz essa facilidade de caber todos os livros em um leitor só”, comenta. Em uma viagem, por exemplo, ela pode carregar cinco, dez, quinze… uma infinidade de livros! E tudo isso digitalmente.
Cristhiano concorda que os meios digitais são interessantes e podem ter sucesso em formar leitores, mas tem um certo receio da liberdade presente na internet e acredita que os booktubers devem estar preparados para o trabalho que se propõem a fazer. “Não precisa ser formado em letras ou jornalismo para falar de livros, mas eu acho que muitos influenciadores não tem, às vezes, conteúdo, e transmitem as coisas de forma equivocada”, expõe.
“Por outro lado, existem influenciadores digitais excelentes que têm contribuído muito para que crianças e jovens tenham contato com a leitura e se sintam estimulados a ler”, contrapõe.
Ele acredita que a internet pode ser efetiva ao influenciar a leitura, mas não pode ser vista como a medida principal. “Você pode colocar o youtuber mais bem preparado do mundo, a biblioteca mais bonita do mundo, qualquer ONG que realiza um trabalho social… mas quem forma um leitor é a escola. Por isso a base de formação de leitores de qualquer sociedade é a escola. Então a leitura do Brasil passa pelos problemas crônicos que a gente tem com a educação brasileira”, afirma.
E a questão da leitura no Brasil parece estar ainda mais triste. O país perdeu leitores entre 2015 e 2019, de acordo com a nova edição da pesquisa Retratos da Leitura, realizada pelo Instituto Pró-Livro, que foi divulgada em 2020. Em quatro anos, o Brasil perdeu cerca de 4,6 milhões de leitores.
Ainda segundo a pesquisa, apenas 52% dos brasileiros tem o hábito da leitura, e a média de livros lidos por ano é baixa: 4,2 livros por pessoa. Considerando uma divisão por idade, a única faixa etária que apresentou aumento de leitores foram as crianças de 5 a 10 anos. Todas as outras faixas etárias tiveram uma queda significativa.
Edna atribui essa queda justamente à internet. “Por que isso não se perdeu com o infantil? Porque para eles os livros são interessantes. É através dos livros que eles vão desenvolver a imaginação. Já os maiores querem se entreter com a realidade virtual, e a leitura acaba se perdendo”, afirma.
“É claro que a tecnologia é importante, não vou dizer que não é. Acho bom, mas até certo ponto. Os responsáveis estão perdendo o freio disso, eles deixam a criança muito tempo no celular e eu não acho que seja bom. Tanto para a visão quanto para a concentração”, aponta. Ela ressalta que o exemplo é importante e que as crianças reproduzem o comportamento dos próprios pais, que devem incentivar o hábito da leitura nos pequenos. “Às vezes eu pergunto pra uma criança ‘você leu um livrinho com a mamãe?’, e ela responde ‘minha mãe só quer ficar no celular’. A tecnologia é muito boa, mas eu acho que atrapalha a convivência com a família, e os pais deixam de viver fases dos filhos para ficarem no celular. Mas a criança precisa ser estimulada, ela precisa de novidade para a leitura”, destaca.
Cristhiano, Edna, Mariana, Marina, Nilceu e Leda concordam que a tecnologia pode ser uma ferramenta positiva para a formação de leitores, mas deve ser dosada e, no caso das crianças, monitorada. Ou então o efeito será contrário, e os indivíduos se afastarão cada vez mais da literatura.
É de comum acordo dos entrevistados que não existe uma idade certa para se iniciar a leitura, mas todos concordam que o desenvolvimento desse hábito se torna mais fácil se o indivíduo for incentivado desde cedo. Isso não significa que o estímulo à leitura deve parar quando a criança cresce: pelo contrário, o costume deve continuar a ser incentivado pelos pais e professores, com iniciativas que atraiam a atenção dos indivíduos.
Assim como Antonio Candido, Marisa Lajolo concorda que a literatura é um direito do ser humano. Em seu livro “Do mundo da leitura para a leitura do mundo”, a professora faz um panorama da leitura no Brasil: “Numa sociedade como a nossa, em que a divisão de bens, de rendas e de lucros é tão desigual, não se estranha que desigualdade similar presida também à distribuição de bens culturais, já que a participação em boa parte destes últimos é mediada pela leitura, habilidade que não está ao alcance de todos, nem mesmo de todos aqueles que foram à escola. Mas ler, no entanto, é essencial”, escreve.
Lajolo acredita que a leitura precisa ser incentivada de forma diferente nas escolas. Os educadores, além de possuírem treinamento e estratégias, devem possuir o essencial: o amor pela literatura. “A discussão sobre leitura, principalmente sobre a leitura numa sociedade que pretende democratizar-se, começa dizendo que os profissionais mais diretamente responsáveis pela iniciação na leitura devem ser bons leitores. Um professor precisa gostar de ler, precisa ler muito, precisa envolver-se com o que lê”, afirma.
Finalizo esta reportagem com um de seus pensamentos, cujo qual compactuo: “É à literatura, como linguagem e como instituição, que se confiam os diferentes imaginários, as diferentes sensibilidades, valores e comportamentos através dos quais uma sociedade expressa e discute, simbolicamente, seus impasses, seus desejos, e suas utopias”.
Foto: Ester Carolina
Fotos: Arquivo pessoal
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COMO NASCE UM LEITOR?
A LEITURA E OS MEIOS DIGITAIS
"MAS, CRIADA A CRIANÇA,EIS QUE ELA SE TRANSFORMA EM JOVEM" - MARISA LAJOLO


